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Um lindo jogo de luzes tomou conta do Estádio Omnilife (Foto: Reinado Marques/Terra)
Bob Fernandes
Direto de Guadalajara
Estádio Guadalajara, duas horas e quinze minutos de cerimônia, inauguração dos 16º Jogos Panamericanos. A vida como ela deve ser, como se quer que ela seja: beleza, cor, emoção, música, amor, arrebatamento…
Guadalajara, México, do lado de fora do estádio. A vida como ela (também) é no país que sofreu quase 50 mil assassinatos nos últimos cinco anos, resultado de confrontos e emulação entre a narco-guerrilha e o Estado quase narco. Onze mil policiais e soldados do exército patrulham a cidade e cercanias.
Cenário de ocupação na metrópole de 6 milhões de habitantes. Carros leves de ataque com metralhadoras. Seis helicópteros militares – três deles, os cinematográficos “Falcões Negros”. Um avião de combate não tripulado. Espalhadas pelas ruas e avenidas, 650 câmeras a vigiar.
Avenida Vallarta, a caminho do anel periférico e do estádio, três pistas: uma, trânsito quase livre, para quem vai à festa como convidado. As outras duas, para os comuns, tráfego pesado, quase parado.
Portões de entrada do estádio. Policiais, ou militares, de quatro distintas forças. Óculos escuros, bonés, capacetes, fuzis, ordens e contra-ordens. O vai e volta de jornalistas e convidados:
- É pelo portão 8…é pelo portão 10…é pelo portão 12…é pelo portão 11…não, é pelo 12…por aqui, não, é pelo 11…não, é no 12…
Via rádios, novas ordens, novas contra-ordens… Uma hora depois de idas e vindas, frenéticas confabulações entre policiais e militares, a decisão:
-…Portão 11…
A jornalista do Recorde, jornal de esportes da cidade, desabafa:
-…aqui não se conhece o significado da palavra logística…
Difícil, quase impossível, logística em meio a tantas forças, armas e a infindável quantidade de crachás. Raro, já dentro do estádio, encontrar quem não tenha alguma espécie de crachá.
O estádio. Cento e vinte cinco mil metros quadrados construídos numa área total de 14 hectares. Redondo e iluminado, lembra uma nave especial spilbergueana. A cobertura, de 3.300 toneladas, é branca, em material sintético. Ao centro e lá no alto, presa por cabos de aço, uma coroa de tecido branco, pronta para desenrolar-se sobre o palco erguido no centro do gramado. Encapadas em alumínio, no último lance de arquibancadas, 16 colunas sustentam a cobertura.
Projeto dos arquitetos franceses Jean-Marie Massaud e Daniel Pouzet, o estádio de 49 mil 850 lugares custou US$ 146 milhões e pertence ao Guadalajara “Chivas”. Batizado Omnilife teve, por exigência da Fifa, o nome suspenso durante o Mundial sub 17 de junho último.
Nesta noite de sexta-feira, 14 de Outubro, o Guadalajara volta a ser Omnilife. Está lotado às sete e meia da noite. O locutor ensaia a plateia: como e quais lanternas acender e em qual momento. O locutor acende a plateia:
- Duzentas milhões de pessoas nos assistem em todo o mundo…
Sombrero a cobrir os cabelos totalmente brancos, sobrancelhas e bigodes tão negros quanto os cabelos dos septuagenários cartolas na tribuna de honra, Vicente Fernández está no palco. Ovação para El Rey da canção Ranchera. Voz grave, 71 anos, ele levanta o público com o Hino do México:
- Mexicanos, al grito de guerra el acero aprestad y el bridón y retiemble en sus centros la tierra al sonoro rugir del cañón…
Na segunda estrofe, Vicente Fernández erra na primeira linha:
- Ciña, oh Patria! Tus sienes de querida…
A multidão, em êxtase nacionalista, nada percebe e segue em frente com a letra certa:
- Ciña, oh Patria! Tus sienes de Oliva…
Fim da segunda estrofe. El Rey erra de novo. Canta “’Con’” el dedo de Dios se escribió…” e não …“’Por’” el dedo de Dios se escribrió…”
A multidão nem se toca e avança, a plenos pulmões.
Montados em seus cavalos, Charros (cavaleiros) de sombrero e Amazonas de vestidos coloridíssimos galopam ao redor do palco. El Rey Vicente Fernández, secundado por 22 Mariachis e 40 dançarinas, retumba com “Mexico Lindo y Querido” e “Guadalajara”.
Ao vivo e a cores, três dos cavalos se livram da grama e ração que comeram.
Um único trompetista no palco. O trompete solitário ecoa “El Niño Perdido”. Para quem é estrangeiro, traz à memória o fundo musical de westerns italianos, Sergio Leone, Clint Eastwood dos anos 70. Das mexicanas, arranca lágrimas nas fileiras de cadeiras próximas ao gramado – US$ 140 por cabeça.
Enquanto, estádio à meia luz, “El Niño Perdido” emociona a plateia, são retirados da área do gramado enormes vasos com “Agave”, a planta que termina em Tequila, e símbolo dos Jogos. Começa o desfile de 42 delegações, que desembarcaram no México com seis mil atletas.
Antígua com 12 esportistas, Belize com quatro, Bermudas com 10. Trajando Osklen em verde e amarelo, branco e azul, o Brasil na pista. Explosão de gritos e palmas nas arquibancadas, o Brasil desfila ao som de “Quemandome de amor”, de Moderato.
Cuba levanta a multidão. Fundo musical com Julieta Venegas - “Eres para mí”- e Maná “Negra Linda”. Os Estados Unidos dividem. Aplausos. E o coro que irrompe nas cadeiras próximas ao gramado:
-…Putos, putos, putos…
No México, como no sul do Brasil, “Puto” é sinônimo de gay.
O México sacode o estádio e fecha o desfile. “México, Timbiriche México” e a plateia canta junto. Maná, com “No sufras más”. A multidão entoa “Labios compartidos”. Love’s in The Air.
Suspensos por cabos quase invisíveis, dançarinos e dançarinas flutuam sobre o palco. Envoltos por um cilindro de tecido claro e luzes, criam a ilusão de atletas a nadar, correr, lutar, sacar…
Pausa. Discursos. Fala o governador Emilio González Márquez. Fala Mario Vázquez Raña, 76 anos, mexicano presidente da ODEPA há 36 anos e “O Dono” dos Jogos em Guadalajara. Aplausos para o presidente Felipe Calderón. O verbo é o de sempre:
- Paz…liberdade…justiça social…fraternidade…igualdade…estamos prontos…
Vázques Raña, o governador, o presidente Calderón… as imagens se sucedem nos dois telões gigantes e nas 865 telas planas distribuídas por 315 camarotes, e os corredores do estádio.
Escuridão. Os espectadores e o show com suas lanternas e luzes em cor azul, amarela, verde, vermelha e lilás. Música eletrônica. Sete dançarinas e dançarinos voejam, transmutados em borboletas batem suas asas – de pano. Fogos de artifício. Mais música eletrônica. Frenesi, plateia em transe.
Mulher fantasiada de borboleta em Guadalajara (Foto: Vipcomm/Divulgação)
Ópera. José Luis Duval e Lila Daun. Também com ela e ele, boleros: ‘Besame mucho como si fuera la última vez…”. Estádio à meia luz. Priscilla Lomei e Claudia Woistein, 17 anos, quarto copaço de cerveja, cantam, como cantam senhoras e senhores: “Besame mucho…”
Dez da noite. Juanes entoa “El Tiempo de Cambiar”. Paola Espinosa, campeã olímpica mexicana flutua, desce sobre a pira olímplica e a acende.
Dez minutos depois das dez. Alejandro Fernández, filho de El Rey Vicente, canta “El Mismo Sol” e a “Canción de Los Juegos Panamericanos”.
Dentro do estádio a festa chega ao fim.
Saída. Espectadores desnorteados indagam por portões e estacionamentos a policiais e voluntários desnorteados. Portões, pistas, avenidas, tudo engarrafa.
É a logística…
Batedores, escolta para o governador Emilio González Marquéz, escolta de oito policiais federais para uma VIP loura de microsaia.
Escolta para o presidente. Calderón, nesta semana, cinco anos de governo depois, admitiu e confessou; há que começar tudo de novo, do zero. Outra polícia, outros juízes e justiça, outro ministério público, outra burocracia… outro Estado, não infiltrado, corrompido e paralisado pelo Estado-Narco.
Helicópteros sobrevoam, as luzes do estádio Omnilife começam a se pagar.
Onze mil policiais e soldados seguem de prontidão. Guadalajara, o México, estão lá fora.
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